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quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Memórias de Camarate por "Inacinho" Steinhardt [3ªParte]

Esta é a terceira e última parte de algumas das memórias que o nosso amigo Inácio guarda de Camarate. "Inacinho", como era conhecido por cá, continua a escrever-nos de Israel, onde reside, para partilhar connosco as suas histórias e o seu conhecimento, para nos ajudar a conhecer e compreender Camarate e certamente também para se sentir mais perto da nossa/sua Vila.

Outros tempos, onde muita coisa mudou... Mas, como se costuma dizer, há coisas que nunca mudam! E uma delas é a essência do Ser das pessoas de Camarate, as que gostam de Camarate. Pessoas boas, amigas, de bom coração... Boa gente! Como é o Inácio. Bem Haja!
ENCONTRAR GENTE BOA NO CAMINHO  
continuação...

Depois foram três anos de separação, enquanto fomos viver no Ribatejo, até mudarmos para Lisboa.

Não sei explicar porquê, mas a recordação mais antiga que tenho da minha infância é a da partida de Camarate para Tremez. Vejo uma cena de madrugada, ao lusco-fusco, uma pequena carroça no largo onde estão as lojas do Gameiro, e os nossos parcos haveres em cima da carroça, quando me foram buscar para ir também na carroça. Nada mais. Suponho que teríamos ido para a estação de caminho-de-ferro de Sacavém, para embarcarmos para Santarém. Em Tremez o meu pai já tinha alugado uma casa melhor, com um quintal enorme, onde tínhamos árvores e uma capoeira com muitas galinhas.

Quando eu completei cinco anos, mudámos novamente, desta vez para Lisboa, onde o meu pai arranjou um emprego a dirigir uma relojoaria.


A partir dessa altura, já íamos muitas vezes a Camarate, para visitar os avós. Eles tinham menos tempo para nos visitar. Tinham uma vida de luta e de trabalho. "Porca da vida" – dizia o avô Jacinto quando lhe corria mal. Outras pessoas da aldeia vinham a nossa casa, de vez em quando, para se aconselharem, para pedir ajuda, ou simplesmente para nos ver. No princípio havia duas carreiras por dia, da empresa Isidoro Duarte, Ldª. De manhã ela levava as pessoas para os empregos em Lisboa e de tarde trazia-as de volta. Mais tarde havia também uma ida e volta à hora do almoço. A garagem era a Almeida Navarro, na Rua da Palma.

Minha mãe e eu íamos muitas vezes, sobretudo ao domingo, visitar os avós. Também algumas vezes, quando mudávamos de casa em Lisboa (isso aconteceu várias vezes, enquanto vivemos em casas subalugadas) dormíamos algumas noites em casa dos avós em Camarate.

Sentávamo-nos com a avó Maria na varanda, onde havia dois bancos de pedra e uma mesa para as refeições. Quem passava vinha falar-nos. Toda a gente nos conhecia. Vinham vender coisas ao domicílio. A avó comprava sempre queijinhos de cabra, que vinham dentro das respetivas formas. Deitava-lhes sal e pimenta e eu adorava-os com papo-secos frescos.

Lembro-me, como se fosse hoje, do dia 1 de setembro de 1939, quando passavam ardinas pela rua, a correr, e a gritar "Rebentou a guerra". Foi um mês antes de eu entrar para a instrução primária. Passava um "oculista" de bicicleta, a vender óculos em segunda mão. A avó Maria, quando precisava, experimentava os que ele levava, e se achava um par que lhe melhorava a visão, comprava. Assim foi dando cabo dos olhos. Só ao cabo de muitos anos conseguimos convence-la a vir a Lisboa para a levarmos à loja de um oculista nosso amigo.


E era muito surda. Quando não ouvia, tinha uma frase fixa: "Nã quê?"

O trabalho era sempre uma coisa incerta. Terminava uma obra, era preciso procurar outra. Se um dia o avô Jacinto não tinha trabalho era atacado de uma tristeza muito grande. Um dia encontrei-o numa depressão dessas. Que aconteceu? Fui despedido. E logo agora que falta trabalho. E onde é que trabalhava? No patrão alemão. Eu gostava muito de trabalhar lá. Quem é o patrão alemão? Ele não sabia o nome. Mostrou-me uns pedaços de plástico transparente que tinha por cima de uma cómoda, na mesma varanda, que servia de sala de estar. "Ele tem lá muitos sacos disto para desfazer." Compreendi que era o dono de uma pequena fábrica que havia nas imediações do aeroporto (antes do alargamento das pistas). Eu, por acaso conhecia-o socialmente. Era romeno, não era alemão. No dia seguinte telefonei-lhe: "O senhor despediu o meu avô?" Não compreendeu até eu lhe explicar. "O velho Jacinto é seu avô?. Eu gosto muito dele e do trabalho dele. Tudo quanto ele faz é forte e para durar. Mas também é feio e deselegante. Forte e feio, como se fazia antigamente. Agora já não se faz tão forte nem tão feio. Diga-lhe que na segunda-feira venha trabalhar. Os mais novos logo lhe explicam como eu quero." O avô Jacinto ficou espantado. O Inácio era amigo do patrão alemão.

Algumas vezes fui a casa deles com amigos com quem ia passear. Para verem uma aldeia ao lado de Lisboa, para conhecerem os meus avós e os meus tios.

Entretanto tinham criado uma sala de espectáculos, a "Sociedade", onde organizavam bailes, teatro popular, e mais tarde uma sessão de cinema de vez em quanto.

A muito custo alguém consegui convencer o avô Jacinto a ir ver o cinema. Foi uma vez e jurou para nunca mais. Depois desabafou comigo os seus protestos: primeiro porque antes de começar apagaram-se as luzes. Logo naquela altura, apareceu em cima do palco um enorme leão. Sossegaram-no, que o leão não fazia mal, que era só fotografia. Era o leão da Metro. Qual metro, qual carapuça, de medições sabia ele, que andava sempre com o metro articulado, amarelo, no bolso. Aquele leão tinha, pelo menos, metro meio. Então e o filme gostou? O que é que se chama o filme? Quando apareceram no palco "as gajas nuas"? Claro que não era nenhum filme pornográfico, mas para o avô Jacinto, mulheres vestidas só com um maiot eram "gajas nuas", não eram mulheres decentes. Nunca mais lá foi.

Não assistimos ao casamento do tio Ramiro, apesar de conhecermos também a noiva, Virgínia e toda a família Salgado. Os avós ficaram muito chocados por não termos sido convidados. Mas formos depois a casa deles com os avós.

Quando nasceu o primeiro neto deles, o Emílio, ele estava muitas vezes lá em casa, quando nós lá íamos. Eu brincava com ele, apesar de eu ser já um adolescente.

Agora sei que tem mais um irmão, Luís, que nunca conheci.

E o avô sempre a trabalhar, quando arranjava trabalho, apesar da sua avançada idade. Ia e vinha a pé, como no passado. Com ele o Isidoro Duarte não se governava…

Um dia vieram dizer-me que o avô Jacinto estava internado no Hospital de S. José. Fui vê-lo. Que aconteceu? Uma tarde vinha do trabalho a pé, como de costume, e desmaiou. Uma ambulância levou-o para o hospital. Mas que idade tem o Avô? Tinha 85 anos!

Um enfermeiro veio pedir-lhe o termómetro, que tinha no sovaco e já se ia embora depois de olhar para a coluna de mercúrio. Chamei-lhe a atenção para o facto de o avô ter colocado a termómetro ao contrário, com o mercúrio para fora. Tornou a meter-lhe o termómetro. Jacinto ficou cheio de admiração por mim: "Tu também sabes disto de doutores?" Perguntei ao enfermeiro que doença é que ele tinha: "Leucemia".

Mais ou menos uma sena depois fui a Camarate acompanhá-lo à sua última morada. Em casa, naquela mesma varanda a que me ligavam tantas boas recordações, o José Moreno chorava como uma criança. Entrou um senhor que eu conhecia de vista: o senhor Raposo, dono de uma quinta em Camarate. Chegou-se ao José Moreno, deu-lhe um abraço, e disse-lhe apenas ma frase que me comoveu: "Eu também fui filho".

Há uns 20 anos, estando de passagem em Portugal, encontrei-me com um sobrinho de minha mulher. Disse-me que tinha que ir a Cabo Ruivo, e convidou-me a ir com ele. Fui com a condição de, na volta ele me levar a Camarate. Não reconheci o caminho, nem as ruas. Levei tempo a colocar-me no espaço. A casa dos meus avós lá estava, mas a varanda estava agora fechada com janelas de madeira. Abri o trinco do corredor e bati à porta da entrada para a antiga varanda. Abriu-me uma senhora que me disse ser a viúva do José Moreno.

Gostava muito de rever, mesmo em fotografia, os meus avós adotivos e aquela abençoada família. Infelizmente, naquela altura não se pensava tanto em fotografias. Se alguém que me lê tiver acesso a algumas fotografias e me puder mandar cópias escaneadas ( inacio@steinhardts.com ) fará uma boa obra e eu ficarei muito grato.

Foram gente muito boa que encontrámos no nosso caminho. Gente de Camarate.

fim...
Inácio Steinhardt
Journalist - Translator - Researcher 

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Memórias de Camarate por "Inacinho" Steinhardt [2ªParte]

Vamos então à 2ª parte das maravilhosas lembranças que o amigo Inácio guarda de Camarate.

Mais uma vez apelamos a quem tenha fotos dos "avós" e "tios" adoptivos do "Inacinho", fotos de Jacinto Moreno, Maria da Conceição Baptista, Ramiro Moreno, José Moreno.

"A quem as tiver e me mandar cópias ficarei muito agradecido.
inacio@steinhardts.com"

ENCONTRAR GENTE BOA NO CAMINHO  

continuação...

O passo seguinte foi ir conhecer as outras aldeias em redor e repetir o estratagema. As aldeias ficaram com os relógios das torres a funcionar, e o meu pai sempre trazia algum lucro para casa. Ia a pé, mas mais tarde comprou uma bicicleta velha e arranjou-a. Então já podia aventurar-se um pouco mais longe. Não vou desenrolar aqui a história toda. Apenas referirei que poucos meses depois de chegar a Portugal e a Camarate, ele já pode mandar vir a minha mãe e já tinha clientes num vasto círculo de terras em redor de Camarate, onde ficámos com bons amigos durante muitos anos.

Então nasci eu. E não deve ter sido fácil para os meus pais, quer sob o aspeto económico, quer para a jovem mãe que não tinha ali família nenhuma. Quem conhece os portugueses sabe que isso não seria obstáculo. Em breve todas as senhoras de Camarate estavam a ajudar a Madama (ou senhora Dona Madama, como algumas diziam) e os homens convidavam o senhor Lobo para um copito de vinho na loja do Gameiro. Ambos também procuravam corresponder ajudando no que podiam e ensinando algumas coisas que não eram conhecidas em Camarate.

A fotografia minha mais antiga que eu tenho no meu álbum de infância aparenta uns 2 anos, e estou vestido com uma blusa branca e um calção de veludo. Muitas vezes me perguntei onde é que a minha mãe tinha dinheiro para me vestir assim. Depois lembrei-me de ouvir a minha mãe contar como as senhoras da aldeia compravam tecidos e confecionavam roupa para o Inacinho… Há pessoas de quem me lembro mais do que outras. Havia uma senhora que era muito amiga da minha mãe e com quem nos visitávamos, mesmo quando já vivíamos em Lisboa. Era a senhora Hortense, viúva de um ourives, e tinha dois filhos o Estevam e a Margarida. O Estevam viveu algum tempo em nossa casa em Lisboa, quando fez o serviço militar. Que será feito deles? Salvo erro o apelido era Batalha. E lembro-me de muitos nomes: os Salgados, que tinham um raposo no quintal, preso a uma árvore, e o Domingos Pintassilgo. E muitos outros.

Mas de quem eu tenho a memória mais perto do coração é dos meus "avós" adotivos, Jacinto e Maria. Eu nunca tive a dita de conhecer os meus avós verdadeiros. Sabem o que isso significa?

Jacinto Fernandes Moreno e Maria da Conceição Batista moravam quase em frente do prédio onde nós morávamos. Eles eram das Mouriscas, uma aldeia do Ribatejo, no concelho de Abrantes. Só recentemente soube que em Camarate havia muita gente de Mouriscas e que quase todos trabalhavam na construção civil. Não sei porquê. Talvez porque no passado longínquo ambas foram aldeias de mouros.

O nome original dele era Jacinto Fernandes, nascido em 1885, filho de Henrique Fernandes e Rosa Maria, em Engarnais Cimeiros, na freguesia de Mouriscas. Moreno deve ter sido alcunha que lhe puseram por causa da cor da pele (mouro?).

Quando chegaram a Camarate, havia ali uma casa em ruínas e ela comprou-a. A avó Maria ficou toda a vida conhecida como "Ti Maria das Ruínas". Amanharam-se como puderam nos restos da casa que ali tinha existido. Ele foi trabalhar como pedreiro, nas terras dos arredores. Quando voltava do trabalho, sempre a pé, porque não havia nenhum transporte, trabalhava na reconstrução das ruínas: uma cozinha, uma retrete sem sanita, um quarto aqui, outro quarto ali. A casa não tinha água canalizada, nem eletricidade, mas tinha um poço e havia candeeiros de petróleo. A "arquitetura" improvisada era a do dono da casa, um quarto virado para um lado, outro para o outro. Os quartos não tinham teto, só telhado e forro feito com papel craft dos sacos de cimento vazios, que deitavam fora nas obras.

Tiveram três filhos: o mais velho, que não conheci, creio que se chamava António, foi estudar, não sei para onde, pois ia a pé para Sacavém, onde apanhava o comboio. Um dia, numa zaragata de estudantes, no comboio, apanhou uma pancada com um chapéu-de-chuva na cabeça e morreu.

O segundo era o Ramiro, que trabalhava sempre com o pai, quer nas obras, quer em casa. E o mais novo, o José, que ficou sempre conhecido como Zé Moreno. Assim que teve idade, acompanhava também o pai e o irmão.

Quando eu nasci, eles davam todo o apoio à minha mãe, que me levava para casa deles. A casa tinha uma porta para a rua, e um corredor, onde estava, logo à entrada uma porta para a varanda aberta. Quando lá passei a varanda ainda existia, mas estava toda fechada com janelas. Essa porta não tinha chave, apenas um trinco de lingueta. Quem chegava, abria o trinco e entrava.

Da varanda havia uma porta para a cozinha que, por sua vez, tinha outra porta para o corredor. No fundo da varanda havia um recinto coberto de cimento, com uma cerca baixa, que servia de tabela, para um "jogo da laranjinha", que ali tinha funcionado. Para quem não conhece, era um jogo muito antigo em Portugal, semelhante de certo modo ao "bowling" dos nossos dias. Jogava-se com seis bolas grandes e uma pequena, a "garrafinha", em que era preciso acertar.

Fora uma iniciativa do "avô" Jacinto (eu sempre o tratei por avô) para servir de chamariz para a venda de vinho a copo. Parece que não durou muito tempo, pois os homens vinham jogar, e consumiam copos de vinho, mas fiado e nunca pagavam. E o negócio acabou.

O beneficiário fui eu, que naquele recinto relativamente seguro aprendi a gatinhar e depois a andar, segurando-me às tabelas laterais.

O avô Jacinto, o tio Ramiro e o Zé Moreno (que nunca foi tio, talvez por ser muito novo) iam todas as manhãs para o trabalho, seis dias por semana, a pé, pela estrada militar de Sacavém, e trabalhavam de sol a sol. Quando chegam a casa iam trabalhar na obra sem fim da casa. Fizeram um chão de cimento, e mais três quartos, depois uma escada para um piso superior aberto (penthouse!) onde havia mais uns tantos quartos, que mais tarde começaram a alugar, e vasos com flores.

Ao sábado, recebiam a "jorna" semanal. Nesse dia, o avô Jacinto, assim que recebia o dinheiro, entrava numa mercearia e comprava uma pequena quantidade de "bolachas Maria", que vinham embrulhadas num cartucho de papel cinzento reciclado, que então se usava nas mercearias. Quando entrava em casa, sorria para mim e perguntava-me; "Ó Inácio, que dia é hoje?". Mesmo que eu não soubesse, a dica fazia-me recordar:"É sábado". "E é dia de quê?" "Dia de bolos!". Quase certo que os filhos dele nunca tiveram esse mimo.
continua...
Inácio Steinhardt
Journalist - Translator - Researcher 

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Memórias de Camarate por "Inacinho" Steinhardt [1ªParte]

Temos o prazer e o orgulho de transmitir histórias e lembranças do Amigo Inácio Steinhardt, que nos escreve de Israel, nasceu em Outubro de 1933 tendo ido viver para Camarate, onde iniciou a sua infância, cheia de memórias, jamais se esqueceu da sua/nossa terra.

Apelamos a quem tenha fotos de Camarate, da época principalmente, que tenha a bondade de as partilhar connosco, com o Inácio, pois as memórias e lembranças devem ser partilhadas!

ENCONTRAR GENTE BOA NO CAMINHO

Imagino que hoje já se poderá dizer em voz alta, em Camarate, que eu não nasci em Camarate. Há alguns decénios atrás, se eu dizia isso era logo atacado verbalmente por todos os presentes: "O Inacinho nasceu em Camarate". Hoje já não há esse risco, porque já não deve haver em Camarate quem se lembre de mim ou dos meus pais

A verdade é que, só por acaso, eu não nasci em Camarate. Os meus pais viviam em Camarate. Mas a minha mãe foi ter-me a Lisboa. Havia lá um hospital israelita e todas as senhoras judias, sobretudo as imigrantes recentes, iam lá ter os seus filhos. Nasci em Lisboa, no dia 5 de Outubro de 1933, dia da implantação da República em 1910, mas também dia da assinatura do Tratado de Zamora, no qual Afonso VII de Castela reconheceu a independência do seu primo Afonso Henriques. Portanto, o dia da verdadeira independência de Portugal. E para tornar a data mais festiva, era também o primeiro dia da festa judaica das Cabanas, chamada Sucot.

Com a idade de oito dias eu já estava na nossa casa em Camarate. Só lá vivemos até pouco antes de completar 3 anos de idade. Mas fiquei sempre ligado a Camarate (ou Camarate ligado a mim), enquanto vivi em Portugal, até 1976, e, na realidade, toda a vida, até hoje, como se vê.

Ainda há alguns decénios, na década de 1960, me aconteceu telefonar para casa de certa personalidade, em Lisboa, e quando disse o meu nome à empregada doméstica que me atendeu, ela respondeu-me: "Ah, mas então é o Inacinho de Camarate!". Ela era de lá e lembrava-se.

Como fomos parar a Camarate, só a Providência Divina poderá explicar.

Meu pai nasceu numa pequena vila da Polónia. Em 1914, quando começou a primeira Guerra Mundial, a primeira não a do Holocausto, todos os judeus tiveram que fugir. Os meus avós foram, com toda a família, para a cidade de Tarnow, na província da Galícia. Meu pai tinha então seis anos de idade. Pouco frequentou a escola, mas foi aprender o ofício de relojoeiro, como aprendiz de um oficial. Eram muitos irmãos em casa, e os ingressos da família eram parcos.

Com a idade de 16 anos resolveu sair de casa dos pais e tentar a sorte noutro lado. Chegou à Alemanha, onde começou por trabalhar numa mina de carvão, mas breve conseguiu ser admitido como aprendiz de relojoeiro, e fazer exame para mestre-oficial da profissão. Era no tempo em que, quando se estragava uma peça, o relojoeiro tinha que a fazer por suas mãos. O meu pai era muito habilidoso de mãos, qualquer arte mecânica era fácil e intuitiva para ele. Na altura o nazismo estava a subir na Alemanha, e alguém convenceu o meu pai a ir-se embora da Alemanha. Chegou à Bélgica, Antuérpia, e foi admitido como operário numa fábrica. Aí encontrou um conterrâneo seu, que andava na mesma senda que ele, um passo mais à frente. Max queria chegar à América, e como primeiro passo desembarcou em Lisboa. Daí escreveu ao meu pai, aconselhando-o a que fizesse o mesmo. Em Portugal podia-se trabalhar e ganhar para viver. Meu pai tinha então conhecido a minha mãe, mas decidiu fazer a tentativa sozinho.

Em Lisboa, Max quis ensinar-lhe o modo de vida da maioria dos jovens polacos que lá haviam chegado. Venda ambulante de malhas, de porta em porta. Meu pai não se sentiu com jeito para isso. Procurou um lugar onde pudesse alugar um quarto modesto mais barato. Foi parar a Camarate. Como e porquê Camarate, não sei. Suponho que procurou os arredores. Deve se ter metido a pé pelas azinhagas da Portela de Sacavém e chegou a Camarate. Gostou e conseguiu alugar um quarto em casa da família Canal, no segundo andar de uma casa com portão de ferro e ameias no telhado, no lado direito de quem sobe, na rua que, na altura ainda não tinha nome, mas que hoje se chama Rua Teodora Maria de Oliveira, dois prédios adiante da "Sociedade", que não sei se já existia. 


Para pagar a renda era preciso trabalhar. O meu pai era muito empreendedor. Passou pelo largo da igreja e viu que o relógio da torre estava parado. Mal sabia dizer algumas palavras em português, mas perguntou porquê. Disseram-lhe que estava parado há muitos anos, porque já não havia quem o arranjasse. Salvo erro era ainda um relógio com rodas de madeira. O meu pai pediu que lhe facilitassem a subida à torre. Foi lá e depois de algum tempo o relógio estava a dar badaladas. Claro que ninguém lhe pagou por isso, mas o estratagema deu resultado. Veio muita gente ver porque era que o sino estava a dar badaladas. Disseram-lhes que o "alemão" era relojoeiro e tinha arranjado o relógio da torre. A maior parte da população provavelmente não tinha relógio. Mas entre os curiosos que vieram ver havia alguns agricultores e proprietários de quintas, que tinham relógios parados em casa. Convidaram-no para ir ver os seus relógios. À saída ou lhe pagavam o bom trabalho ou lhe davam um cesto com frutas e hortaliças.

As pessoas queriam saber como se chamava o "alemão". O meu pai respondeu "Wolf". E o que queria dizer Wolf? Com o pouco que foi aprendendo de português (meu pai sempre teve muito jeito para línguas, sem nunca ter aprendido nenhuma na escola) ele explicou que era um animal que vivia na floresta. Perceberam que era um lobo. Desde então ficou conhecido pelo senhor Lobo, ou "o Lobo de Camarate", e sempre ficou Lobo, até conseguir naturalizar-se português e então escolheu "Lopo Steinhardt"

continua...
Inácio Steinhardt
Journalist - Translator - Researcher