Esta é a terceira e última parte de algumas das memórias que o nosso amigo Inácio guarda de Camarate. "Inacinho", como era conhecido por cá, continua a escrever-nos de Israel, onde reside, para partilhar connosco as suas histórias e o seu conhecimento, para nos ajudar a conhecer e compreender Camarate e certamente também para se sentir mais perto da nossa/sua Vila.
Outros tempos, onde muita coisa mudou... Mas, como se costuma dizer, há coisas que nunca mudam! E uma delas é a essência do Ser das pessoas de Camarate, as que gostam de Camarate. Pessoas boas, amigas, de bom coração... Boa gente! Como é o Inácio. Bem Haja!
Outros tempos, onde muita coisa mudou... Mas, como se costuma dizer, há coisas que nunca mudam! E uma delas é a essência do Ser das pessoas de Camarate, as que gostam de Camarate. Pessoas boas, amigas, de bom coração... Boa gente! Como é o Inácio. Bem Haja!
ENCONTRAR GENTE BOA NO CAMINHO
continuação...
Depois foram três anos de separação, enquanto fomos viver no Ribatejo, até mudarmos para Lisboa.
Não sei explicar porquê, mas a recordação mais antiga que tenho da minha infância é a da partida de Camarate para Tremez. Vejo uma cena de madrugada, ao lusco-fusco, uma pequena carroça no largo onde estão as lojas do Gameiro, e os nossos parcos haveres em cima da carroça, quando me foram buscar para ir também na carroça. Nada mais. Suponho que teríamos ido para a estação de caminho-de-ferro de Sacavém, para embarcarmos para Santarém. Em Tremez o meu pai já tinha alugado uma casa melhor, com um quintal enorme, onde tínhamos árvores e uma capoeira com muitas galinhas.
Quando eu completei cinco anos, mudámos novamente, desta vez para Lisboa, onde o meu pai arranjou um emprego a dirigir uma relojoaria.
A partir dessa altura, já íamos muitas vezes a Camarate, para visitar os avós. Eles tinham menos tempo para nos visitar. Tinham uma vida de luta e de trabalho. "Porca da vida" – dizia o avô Jacinto quando lhe corria mal. Outras pessoas da aldeia vinham a nossa casa, de vez em quando, para se aconselharem, para pedir ajuda, ou simplesmente para nos ver. No princípio havia duas carreiras por dia, da empresa Isidoro Duarte, Ldª. De manhã ela levava as pessoas para os empregos em Lisboa e de tarde trazia-as de volta. Mais tarde havia também uma ida e volta à hora do almoço. A garagem era a Almeida Navarro, na Rua da Palma.
Minha mãe e eu íamos muitas vezes, sobretudo ao domingo, visitar os avós. Também algumas vezes, quando mudávamos de casa em Lisboa (isso aconteceu várias vezes, enquanto vivemos em casas subalugadas) dormíamos algumas noites em casa dos avós em Camarate.
Sentávamo-nos com a avó Maria na varanda, onde havia dois bancos de pedra e uma mesa para as refeições. Quem passava vinha falar-nos. Toda a gente nos conhecia. Vinham vender coisas ao domicílio. A avó comprava sempre queijinhos de cabra, que vinham dentro das respetivas formas. Deitava-lhes sal e pimenta e eu adorava-os com papo-secos frescos.
Lembro-me, como se fosse hoje, do dia 1 de setembro de 1939, quando passavam ardinas pela rua, a correr, e a gritar "Rebentou a guerra". Foi um mês antes de eu entrar para a instrução primária. Passava um "oculista" de bicicleta, a vender óculos em segunda mão. A avó Maria, quando precisava, experimentava os que ele levava, e se achava um par que lhe melhorava a visão, comprava. Assim foi dando cabo dos olhos. Só ao cabo de muitos anos conseguimos convence-la a vir a Lisboa para a levarmos à loja de um oculista nosso amigo.
E era muito surda. Quando não ouvia, tinha uma frase fixa: "Nã quê?"
O trabalho era sempre uma coisa incerta. Terminava uma obra, era preciso procurar outra. Se um dia o avô Jacinto não tinha trabalho era atacado de uma tristeza muito grande. Um dia encontrei-o numa depressão dessas. Que aconteceu? Fui despedido. E logo agora que falta trabalho. E onde é que trabalhava? No patrão alemão. Eu gostava muito de trabalhar lá. Quem é o patrão alemão? Ele não sabia o nome. Mostrou-me uns pedaços de plástico transparente que tinha por cima de uma cómoda, na mesma varanda, que servia de sala de estar. "Ele tem lá muitos sacos disto para desfazer." Compreendi que era o dono de uma pequena fábrica que havia nas imediações do aeroporto (antes do alargamento das pistas). Eu, por acaso conhecia-o socialmente. Era romeno, não era alemão. No dia seguinte telefonei-lhe: "O senhor despediu o meu avô?" Não compreendeu até eu lhe explicar. "O velho Jacinto é seu avô?. Eu gosto muito dele e do trabalho dele. Tudo quanto ele faz é forte e para durar. Mas também é feio e deselegante. Forte e feio, como se fazia antigamente. Agora já não se faz tão forte nem tão feio. Diga-lhe que na segunda-feira venha trabalhar. Os mais novos logo lhe explicam como eu quero." O avô Jacinto ficou espantado. O Inácio era amigo do patrão alemão.
Algumas vezes fui a casa deles com amigos com quem ia passear. Para verem uma aldeia ao lado de Lisboa, para conhecerem os meus avós e os meus tios.
Entretanto tinham criado uma sala de espectáculos, a "Sociedade", onde organizavam bailes, teatro popular, e mais tarde uma sessão de cinema de vez em quanto.
A muito custo alguém consegui convencer o avô Jacinto a ir ver o cinema. Foi uma vez e jurou para nunca mais. Depois desabafou comigo os seus protestos: primeiro porque antes de começar apagaram-se as luzes. Logo naquela altura, apareceu em cima do palco um enorme leão. Sossegaram-no, que o leão não fazia mal, que era só fotografia. Era o leão da Metro. Qual metro, qual carapuça, de medições sabia ele, que andava sempre com o metro articulado, amarelo, no bolso. Aquele leão tinha, pelo menos, metro meio. Então e o filme gostou? O que é que se chama o filme? Quando apareceram no palco "as gajas nuas"? Claro que não era nenhum filme pornográfico, mas para o avô Jacinto, mulheres vestidas só com um maiot eram "gajas nuas", não eram mulheres decentes. Nunca mais lá foi.
Não assistimos ao casamento do tio Ramiro, apesar de conhecermos também a noiva, Virgínia e toda a família Salgado. Os avós ficaram muito chocados por não termos sido convidados. Mas formos depois a casa deles com os avós.
Quando nasceu o primeiro neto deles, o Emílio, ele estava muitas vezes lá em casa, quando nós lá íamos. Eu brincava com ele, apesar de eu ser já um adolescente.
Agora sei que tem mais um irmão, Luís, que nunca conheci.
E o avô sempre a trabalhar, quando arranjava trabalho, apesar da sua avançada idade. Ia e vinha a pé, como no passado. Com ele o Isidoro Duarte não se governava…
Um dia vieram dizer-me que o avô Jacinto estava internado no Hospital de S. José. Fui vê-lo. Que aconteceu? Uma tarde vinha do trabalho a pé, como de costume, e desmaiou. Uma ambulância levou-o para o hospital. Mas que idade tem o Avô? Tinha 85 anos!
Um enfermeiro veio pedir-lhe o termómetro, que tinha no sovaco e já se ia embora depois de olhar para a coluna de mercúrio. Chamei-lhe a atenção para o facto de o avô ter colocado a termómetro ao contrário, com o mercúrio para fora. Tornou a meter-lhe o termómetro. Jacinto ficou cheio de admiração por mim: "Tu também sabes disto de doutores?" Perguntei ao enfermeiro que doença é que ele tinha: "Leucemia".
Mais ou menos uma sena depois fui a Camarate acompanhá-lo à sua última morada. Em casa, naquela mesma varanda a que me ligavam tantas boas recordações, o José Moreno chorava como uma criança. Entrou um senhor que eu conhecia de vista: o senhor Raposo, dono de uma quinta em Camarate. Chegou-se ao José Moreno, deu-lhe um abraço, e disse-lhe apenas ma frase que me comoveu: "Eu também fui filho".
Há uns 20 anos, estando de passagem em Portugal, encontrei-me com um sobrinho de minha mulher. Disse-me que tinha que ir a Cabo Ruivo, e convidou-me a ir com ele. Fui com a condição de, na volta ele me levar a Camarate. Não reconheci o caminho, nem as ruas. Levei tempo a colocar-me no espaço. A casa dos meus avós lá estava, mas a varanda estava agora fechada com janelas de madeira. Abri o trinco do corredor e bati à porta da entrada para a antiga varanda. Abriu-me uma senhora que me disse ser a viúva do José Moreno.
Gostava muito de rever, mesmo em fotografia, os meus avós adotivos e aquela abençoada família. Infelizmente, naquela altura não se pensava tanto em fotografias. Se alguém que me lê tiver acesso a algumas fotografias e me puder mandar cópias escaneadas ( inacio@steinhardts.com ) fará uma boa obra e eu ficarei muito grato.
Foram gente muito boa que encontrámos no nosso caminho. Gente de Camarate.