Poderá também gostar de:

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Memórias de Camarate por "Inacinho" Steinhardt [2ªParte]

Vamos então à 2ª parte das maravilhosas lembranças que o amigo Inácio guarda de Camarate.

Mais uma vez apelamos a quem tenha fotos dos "avós" e "tios" adoptivos do "Inacinho", fotos de Jacinto Moreno, Maria da Conceição Baptista, Ramiro Moreno, José Moreno.

"A quem as tiver e me mandar cópias ficarei muito agradecido.
inacio@steinhardts.com"

ENCONTRAR GENTE BOA NO CAMINHO  

continuação...

O passo seguinte foi ir conhecer as outras aldeias em redor e repetir o estratagema. As aldeias ficaram com os relógios das torres a funcionar, e o meu pai sempre trazia algum lucro para casa. Ia a pé, mas mais tarde comprou uma bicicleta velha e arranjou-a. Então já podia aventurar-se um pouco mais longe. Não vou desenrolar aqui a história toda. Apenas referirei que poucos meses depois de chegar a Portugal e a Camarate, ele já pode mandar vir a minha mãe e já tinha clientes num vasto círculo de terras em redor de Camarate, onde ficámos com bons amigos durante muitos anos.

Então nasci eu. E não deve ter sido fácil para os meus pais, quer sob o aspeto económico, quer para a jovem mãe que não tinha ali família nenhuma. Quem conhece os portugueses sabe que isso não seria obstáculo. Em breve todas as senhoras de Camarate estavam a ajudar a Madama (ou senhora Dona Madama, como algumas diziam) e os homens convidavam o senhor Lobo para um copito de vinho na loja do Gameiro. Ambos também procuravam corresponder ajudando no que podiam e ensinando algumas coisas que não eram conhecidas em Camarate.

A fotografia minha mais antiga que eu tenho no meu álbum de infância aparenta uns 2 anos, e estou vestido com uma blusa branca e um calção de veludo. Muitas vezes me perguntei onde é que a minha mãe tinha dinheiro para me vestir assim. Depois lembrei-me de ouvir a minha mãe contar como as senhoras da aldeia compravam tecidos e confecionavam roupa para o Inacinho… Há pessoas de quem me lembro mais do que outras. Havia uma senhora que era muito amiga da minha mãe e com quem nos visitávamos, mesmo quando já vivíamos em Lisboa. Era a senhora Hortense, viúva de um ourives, e tinha dois filhos o Estevam e a Margarida. O Estevam viveu algum tempo em nossa casa em Lisboa, quando fez o serviço militar. Que será feito deles? Salvo erro o apelido era Batalha. E lembro-me de muitos nomes: os Salgados, que tinham um raposo no quintal, preso a uma árvore, e o Domingos Pintassilgo. E muitos outros.

Mas de quem eu tenho a memória mais perto do coração é dos meus "avós" adotivos, Jacinto e Maria. Eu nunca tive a dita de conhecer os meus avós verdadeiros. Sabem o que isso significa?

Jacinto Fernandes Moreno e Maria da Conceição Batista moravam quase em frente do prédio onde nós morávamos. Eles eram das Mouriscas, uma aldeia do Ribatejo, no concelho de Abrantes. Só recentemente soube que em Camarate havia muita gente de Mouriscas e que quase todos trabalhavam na construção civil. Não sei porquê. Talvez porque no passado longínquo ambas foram aldeias de mouros.

O nome original dele era Jacinto Fernandes, nascido em 1885, filho de Henrique Fernandes e Rosa Maria, em Engarnais Cimeiros, na freguesia de Mouriscas. Moreno deve ter sido alcunha que lhe puseram por causa da cor da pele (mouro?).

Quando chegaram a Camarate, havia ali uma casa em ruínas e ela comprou-a. A avó Maria ficou toda a vida conhecida como "Ti Maria das Ruínas". Amanharam-se como puderam nos restos da casa que ali tinha existido. Ele foi trabalhar como pedreiro, nas terras dos arredores. Quando voltava do trabalho, sempre a pé, porque não havia nenhum transporte, trabalhava na reconstrução das ruínas: uma cozinha, uma retrete sem sanita, um quarto aqui, outro quarto ali. A casa não tinha água canalizada, nem eletricidade, mas tinha um poço e havia candeeiros de petróleo. A "arquitetura" improvisada era a do dono da casa, um quarto virado para um lado, outro para o outro. Os quartos não tinham teto, só telhado e forro feito com papel craft dos sacos de cimento vazios, que deitavam fora nas obras.

Tiveram três filhos: o mais velho, que não conheci, creio que se chamava António, foi estudar, não sei para onde, pois ia a pé para Sacavém, onde apanhava o comboio. Um dia, numa zaragata de estudantes, no comboio, apanhou uma pancada com um chapéu-de-chuva na cabeça e morreu.

O segundo era o Ramiro, que trabalhava sempre com o pai, quer nas obras, quer em casa. E o mais novo, o José, que ficou sempre conhecido como Zé Moreno. Assim que teve idade, acompanhava também o pai e o irmão.

Quando eu nasci, eles davam todo o apoio à minha mãe, que me levava para casa deles. A casa tinha uma porta para a rua, e um corredor, onde estava, logo à entrada uma porta para a varanda aberta. Quando lá passei a varanda ainda existia, mas estava toda fechada com janelas. Essa porta não tinha chave, apenas um trinco de lingueta. Quem chegava, abria o trinco e entrava.

Da varanda havia uma porta para a cozinha que, por sua vez, tinha outra porta para o corredor. No fundo da varanda havia um recinto coberto de cimento, com uma cerca baixa, que servia de tabela, para um "jogo da laranjinha", que ali tinha funcionado. Para quem não conhece, era um jogo muito antigo em Portugal, semelhante de certo modo ao "bowling" dos nossos dias. Jogava-se com seis bolas grandes e uma pequena, a "garrafinha", em que era preciso acertar.

Fora uma iniciativa do "avô" Jacinto (eu sempre o tratei por avô) para servir de chamariz para a venda de vinho a copo. Parece que não durou muito tempo, pois os homens vinham jogar, e consumiam copos de vinho, mas fiado e nunca pagavam. E o negócio acabou.

O beneficiário fui eu, que naquele recinto relativamente seguro aprendi a gatinhar e depois a andar, segurando-me às tabelas laterais.

O avô Jacinto, o tio Ramiro e o Zé Moreno (que nunca foi tio, talvez por ser muito novo) iam todas as manhãs para o trabalho, seis dias por semana, a pé, pela estrada militar de Sacavém, e trabalhavam de sol a sol. Quando chegam a casa iam trabalhar na obra sem fim da casa. Fizeram um chão de cimento, e mais três quartos, depois uma escada para um piso superior aberto (penthouse!) onde havia mais uns tantos quartos, que mais tarde começaram a alugar, e vasos com flores.

Ao sábado, recebiam a "jorna" semanal. Nesse dia, o avô Jacinto, assim que recebia o dinheiro, entrava numa mercearia e comprava uma pequena quantidade de "bolachas Maria", que vinham embrulhadas num cartucho de papel cinzento reciclado, que então se usava nas mercearias. Quando entrava em casa, sorria para mim e perguntava-me; "Ó Inácio, que dia é hoje?". Mesmo que eu não soubesse, a dica fazia-me recordar:"É sábado". "E é dia de quê?" "Dia de bolos!". Quase certo que os filhos dele nunca tiveram esse mimo.
continua...
Inácio Steinhardt
Journalist - Translator - Researcher 

1 comentário:

Anónimo disse...

Olà
Eu estou por terras no estrangeiro, mas vivi muitos anos no bairro da torre e minha tia Maria e primos ainda por Camarate
Família Lourenço
Paula